Ao ler o livro Olhos D’água conheci não apenas personagens com experiências únicas de uma vida sofrida, mas inúmeras formas de se contar a história de um povo e suas raízes. Conceição Evaristo nos insere pouco a pouco na realidade que está disposta a criar, deixando o leitor emocionado ao ponto de se sentir vivo, muito pela simbologia histórica que o livro carrega.
A água aqui tem papel fundamental na fluidez das palavras, na identificação do leitor sobre as cenas que são descritas por Evaristo que a descreve em forma de tempestade, lágrimas, rio ou mar. Por ser um elemento básico para a sobrevivência e sempre presente ao longo da vida, a água trabalha pela simbologia da mudança, em o quanto nos transformamos no decorrer da vida e como todas as nossas experiências são capazes de nos reinventar a cada instante.
Na cena inicial do primeiro conto, a personagem se vê perdida em sua própria indagação: “De que cor são os olhos de minha mãe?”. Ela se lembra da infância pobre no interior, do barraco que estremecia quando caía a chuva, dos olhos alegres da mãe e das irmãs ao brincarem de rainhas e princesas, de tudo o que a mãe fazia para apaziguar um pouco a fome das meninas, menos da cor de seus olhos. Ao final do conto, a mãe decide voltar à cidade natal para enfim ter a lembrança da cor dos olhos de sua progenitora. Ao retornar para casa, sua filha agora é quem a questiona sobre a cor de seus olhos.
Temos então, ainda na abertura do texto, a primeira metáfora embasada na água e suas transformações. Primeiro na passagem da infância para a vida adulta de uma mulher e sua mãe, depois ao sabermos que é esta mulher que agora tem uma filha, que provavelmente tem inúmeras indagações sobre a mãe, e que um dia também será uma mulher e quem sabe, terá uma filha. O ciclo da vida está posto de maneira sutil da abertura ao final do livro, em meio a nascimentos, mortes, amor e violência, somos gentilmente apresentados a um contexto periférico do Brasil e de toda a herança cultural negra segregada com o tempo.
Além de conseguir criar a vontade no leitor de buscar mais informações sobre etnicidade, história brasileira e africana, a autora tece a cada linha um diálogo sobre a luta da mulher para viver com tranquilidade, e, principalmente, a luta da mulher negra em contextos pobres. Não temos apenas personagens femininas no livro, mas são elas quem formam a identidade da leitura através de suas experiências com homens e como são tratadas. Com “Olhos D’água” conhecemos a esposa de um bandido que morre junto ao amado ao serem encontrados por policiais; uma empregada doméstica que dispõe a vida aos jantares da patroa e aos filhos, encontra com o pai de um dos meninos fazendo um assalto no ônibus que está e acaba sendo linchada por o conhecer, uma mulher que é estuprada e escolhe criar a criança, a mulher que dá a luz a única criança da tribo, e muitas outras que nos fazem pensar mais a fundo sobre o significado de ser quem somos.